Sinal Vemerlho
Sábado. Noite. Vinte e uma horas e trinta minutos. Cidade de Maceió. Avenida Fernandes Lima. Sinal de trânsito em frente a uma agência bancária qualquer.
O
sinal acabou de ficar vermelho.
A
bolha temporal que se forma nesse curto espaço de tempo se estabeleceu.
Os
poucos segundos poderiam ser uma eternidade em pensamentos.
Esse
era um instante em que a respiração urbana dava uma pequena pausa, para retomar
o fôlego, prosseguir em seu destino, sua marcha irrefreável atropelando os
pequenos animais que não fossem espertos o suficiente.
Se
o devir seria negro como um céu sem estrelas, onde o negrume pareceria uma
tinta fresca prestes a pingar em nossas cabeças, ou belo e brilhante como as
praias da cidade em que as águas assumem um tom azulado nos dias de sol mais
escaldante unicamente o amanhã revelaria. Na verdade cada dia só podia
assegurar como ele estava sendo, um dia de bonança não garantia que o próximo
nascer do sol seria como um coral de anjos nessa selva.
Todos
os dias muitos filhos dessa loba chamada Maceió, nome este que vem do Tupi "Maçayó" ou "Maçaio-k" que
significa “o que tapa o alagadiço”, tombavam, não era à toa avaliada como a
cidade mais violenta do Brasil. Alguns entravam no sono eterno ceifados por
seus semelhantes, outros vitimados pela falta de empatia do poder que regia as
suas vidas desde a instrução nas escolas públicas até o momentos fatídico em
que agonizavam em leitos hospitalares lutando o pior embate que um mortal pode
travar...o combate contra a morte.
Culpados...Inocentes...quem poderia discernir com
absoluta clareza?
Quem eram os réus:
Os governantes ambiciosos, com suas taças de
vinho sempre a transbordar assim como os césares de tempos antigos, e com
escrúpulos tão podres e fétidos quantos os alimentos que os urubus conseguiam nos
lixões, disputando espaço com os catadores que não almejavam luxo, mas só tirar
do lixo um sustento, ao menos um pão para repartir entre a família numerosa?
Aqueles que optavam pela vida perigosa, mas em
que havia chances de alto lucro bastando somente não ter um alto grau de
piedade e não se importar em arrebatar os bens de pessoas que mal conseguiam
ter três refeições por dia, pessoas estas que tinham de realizar o verdadeiro
milagre da multiplicação não deixando sequer migalhas sobrando para alimentar
as formigas de suas moradias que morriam de inanição. Miseráveis subtraindo de
miseráveis, essa face da humanidade era mais escura que o lado negro da lua e
superava em horror qualquer outro monstro engendrado pela imaginação humana ou
que realmente caminhasse pelo asfalto que asfixiava as plantas que jamais
cresceriam. Serão estes os Judas que merecem receber o veredicto?
Uma terceira possibilidade seriam os omissos que
em seus apartamentos de luxos, torres de Babel, proferiam muitas palavras que
faziam os pássaros caírem mortos tamanha a concentração de veneno. As mulheres
são como manequins numa vitrine que anuncia a felicidade à preços de saldão,
com seus corpos esculpidos por metais frios assim como seus corações, e os homens eram seres cuja maior preocupação
existencial era qual o carro que comprariam no próximo ano e como estava o seu
saldo bancário. Então, os réus estão nessa terceira categoria?
Essa não era uma questão que cabia, por exemplo,
ao único motoqueiro que estava montado em sua Harley Davidson em frente à faixa
de pedestre.
A Harley Davidson tinha sido comprada de um
turista gringo, não se lembrava da nacionalidade dele, que veio passar as
férias na Praia de Ponta Verde. Foi uma pechincha. Durante as poucas conversas
que tiveram notou que o turista, que falava um português muito precário, sempre
era evasivo quando perguntado sobre a sua vida no país de origem. Devia ser um
fugitivo.
O motoqueiro se chamava Alessandro e para ele a
vida urbana com o seu adubo de mortes era uma pústula sobre o planeta que
jamais poderia ser curada, era um parasita, um vírus, muito lucrativo. Cada
cadáver que dava entrada no Instituto Médico Legal era uma moeda que tilintava
no caixa.
A cidade sempre estava acordada.
Algumas vezes mais calma, outras tão alucinada
quanto um usuário de ecstasy dançando ao som de luzes multicoloridas, uma
fumaça branca que se arrastava pelo chão e corpos que brilhavam com o suor
brotando dos poros.
A cidade era um organismo vivo, as pessoas iam e
vinham, mesmo que não soubessem essencialmente para onde iam ou o motivo de
irem, mantendo-a viva.
Nem todos eram vistos no meio da massa, dentre
eles haviam os incorpóreos. Os incorpóreos respiravam um ar mais baixo, pesado,
soturno, viviam numa atmosfera abaixo da cintura das demais pessoas.
Constantemente eram vistos com seus braços estendidos clamando por um trocado
ou seria um pouco de amor? Seja qual das suas opções for, recebiam muito pouco.
Eram as cartas jogadas para fora do baralho.
Sexo também era uma valiosa moeda de troca por essas
bandas. A orla no trecho da Praia da Avenida era cheia de mulheres de todas as
faixas etárias que negociavam seus corpos com os mesmos homens que em suas
casas davam um beijo de boa noite na filha e diziam para as esposas que iriam
resolver assuntos de trabalho. Para os gostos mais exóticos havia também
travestis que mediante um bom pagamento poderiam participar de qualquer
sodomia. Muitos clientes davam vazão para a pederastia em seus carros, que
durante a semana inteira transportavam a família para passeios. Eles queriam
poupar o dinheiro que gastariam no motel.
O cheiro que
Alessandro mais apreciava era o aroma
de gasolina. Sim, ele amava aquela fragrância. Ela traduzia tão bem a resposta
do que era ser urbano de verdade. Pensar que o petróleo que estava no tanque de
sua moto pode ter sido originado da matéria decomposta há milênios de
ancestrais daqueles que agora se deslocavam em seus monstros de metal era
poesia pura.
A morte dando combustível para o futuro.
A gasolina também despertava uma mania sua.
Ele gostava de ver coisas queimando. Virando
cinzas, afinal esse era a sina de todos os seres humanos e criaturas viventes.
Correto?
O fogo era a síntese do sentido da vida.
Consumir, crescer, consumir mais, queimar tudo pela frente e no final ser
apagado por um sopro gélido. Essa também era a programação dessa maquina de
ossos, carne, secreções, sonhos, desejos, delírios denominada bicho homem.
O sinal daqui a pouco iria abrir novamente.
Alessandro rapidamente retirou o capacete negro com
chamas verdes desenhadas nele, revelando um rosto que parecia ter pouco mais de
vinte anos, contudo fazia quem o observasse se sentir na presença de alguém
muito mais velho. Arrumou seu cabelo castanho claro. Ajeitou também os óculos
escuros que usava.
Apesar de
ser noite gostava de sempre estar com os óculos que comprou em uma loja de
conveniência em um posto. Havia um ditado que dizia que os olhos são a janela
da alma...mas quando sua alma é um abismo que suga como um buraco negro tudo o
que se aproxima não convém ficar expondo-a. Pode assustar os desavisados.
A cidade não era muito diferente dele, talvez o
espirito da cidade fosse a coisa que mais se assemelhasse com a sua existência.
Colocou o capacete novamente na cabeça, mas dessa
vez deixou a viseira levantada.
Pegou um cigarro em um dos bolsos da jaqueta que
usava e colocou na boca. Na outra mão já estava o isqueiro quadrado de cor
dourada. Acendeu o cigarro. Baixou a viseira. Não se importava com as cinzas
que cairiam nele, sentir um pouco de dor poderia ser bom.
A dor servia de parâmetro para o prazer que se
procura. Ele também queria aspirar todo o câncer da fumaça do cigarro, sentir o
melhor do sabor de viver em uma sociedade que vendia a doença e a um preço
ainda mais alto poderia lhe dar a cura também. Era uma sociedade admirável
mesmo! Um mundo genial!
Uma velhinha, o último dos pedestres estava no
meio do caminho para o outro lado, ela tinha artrose o que fazia de cada
movimento uma dor imensa e a sua velocidade era como a de uma tartaruga, quando
sinal abriu.
A bolha de tempo lento se dissipou e tudo voltou
com o peso do concreto de todos os prédios do mundo.
Os motores dos carros roncavam. Pareciam animais
prestes a darem o bote em suas presas. Mesmo assim os carros aguardavam que a
senhora idosa chegasse ao outro lado.
Alessandro acelerou sua moto, expelindo uma
grande quantidade de fumaça pelo carburador cromado, e antes mesmo que a idosa
se desse conta do que estava se formando, a sinfonia fúnebre que tocava, se viu
sendo jogada no chão. Sua cabeça bateu com muita força no asfaltado que estava
quente por causa do calor acumulado durante o dia.
Sangue, muito sangue, começava a sair do corte
que se formou na cabeça coberta de cabelos brancos que agora adquiriam mechas
vermelhas. A vítima não se mexia.
Alessandro olhou por um dos retrovisores da moto
e viu que alguns motoristas saiam de seus carros, não para prestarem socorro e
sim para filmarem tudo com seus celulares de última geração e mais tarde
colocarem os vídeos na internet. Esses não eram diferentes dos urubus.
Quando alguém com bondade e compaixão suficiente
aparecesse a mulher já teria falecido. Aqueles homens e mulheres às vezes o
faziam perceber que não era tão mal quanto imaginava.
Alguns metros a frente sentiu o cheiro do sangue
em contato com o asfalto, esse era outro perfume que o agradava. Deu um sorriso
com os dentes fechados, mantendo o cigarro preso, seus dentes caninos maiores
do que o normal, amarelados e afiados como agulhas ficaram ressaltados.
Alessandro prosseguiu seu rumo sem qualquer inconveniente.
A noite era sua. A cidade era ele. Havia muito alimento para o seu coração
negro ali.
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