Silvio
estava fugindo da policia em alta velocidade, com um opala roubado em Maceió,
capital de Alagoas, por uma estrada bastante danificada próxima do Município de
Piranhas. Ele era um pistoleiro procurado por oito assassinatos na capital e
também era suspeito do assassinato de um juiz, o que agravava ainda mais sua
situação perante a lei. A perseguição começou após ter acelerado alguns
quilômetros atrás quando visualizou uma blitz, para sua sorte conseguiu furar a
fiscalização porque havia somente um veículo da policia militar cuidando dessa
tarefa e pelo estado deplorável dela, com evidentes partes enferrujadas e dois
dos quatro pneus carecas, concluía que logo mais iria conseguir despistar os
tiras ou “cinzentos” como costumava chamar devido à cor de seus uniformes. Depois
de dez minutos com os cinzentos em seu encalço viu que a gasolina do carro já
estava acabando e logo iria parar, considerando que o reforço policial provavelmente
já havia sido requisitado precisava urgentemente achar algum lugar para se
esconder, mas para onde ir numa autoestrada cercada por pequenas montanhas em
uma terra de solo árido? Teria de arrumar uma solução o mais rápido possível!
Foi
estabelecida uma grande distância da viatura, suficiente para ficar fora do
alcance da visão dos agentes, quando notou uma trilha que já estava quase
completamente coberta por capim seco, não pensou duas vezes, entrou nessa
trilha, não quis sequer pensar aonde ela poderia levar, queria somente fugir da
prisão. Os policiais passaram direto pela trilha semiocultada. O opala começou
a anunciar que iria parar instantes após ter tomado a trilha para sabe Deus
onde, dando pequenos trancos, quando Silvio viu há mais uns quinhentos metros à
frente um pequeno vilarejo, muito pequeno mesmo, parecia ter somente uma rua
com construções pelos lados, ao menos era isso que conseguia enxergar. O último
tranco do veículo foi tão forte que quase o fez bater com a cabeça no
para-brisa, bateu no volante com os dois punhos fechados num gesto de
retribuição. Desceu do carro olhando pelo caminho de onde veio, nada mais
estava lhe seguindo, uma preocupação a menos. Como o carro tinha parado teve de
empurrá-lo para o vilarejo, afinal se o veículo fosse avistado sua localização
seria denunciada e problemas iriam aparecer, não queria abusar da sorte duas
vezes seguidas. O dia estava chegando ao fim, a lua já podia ser vista no céu,
era lua cheia, graças ao crepúsculo a labuta de empurrar sozinho o carro foi
mais amena, mas não chegou a ser fácil. A sua constituição física era quase a
de um homem doente, muito magro, tão magro que quando sorria ao invés de ânimo
transmitia medo, pois ao verem isso as pessoas só tinham pensamentos e
sentimentos sobre morte e obviamente o vício em tabaco, fumava desde os treze
anos e agora tinha quarenta, não o tornava um atleta. A tarefa de empurrar o
veículo teve de ser intercalada com alguns intervalos para recuperar o fôlego e
tosses tão fortes que pareciam rasgar a sua garganta que estava sedenta por um
pingo de água.
O
carro foi colocado por trás de uma casa grande de primeiro andar com uma
faixada sem adornos, uma pintura vermelha e uma placa acima da entrada que
dizia “Pousada descansem bem”. De
frente para a pousada falou:
—
Oi? Alguém em casa? – nenhuma resposta veio, pela absurda calmaria que estava
ali chegou à conclusão que deveria ser um lugar abandonado.
Como
a noite já havia chegado teria de ficar nesse lugar, porque deduziu que todos
os policiais que estivessem nas estradas das cidades vizinhas já estavam
alertados quanto à sua presença na região e deviam pensar que ele tentaria
fugir do estado durante a noite, o cerco sem dúvida alguma deveria estar sendo
reforçado e por isso era necessário deixar a poeira assentar. Por sorte sua o
dono do carro tinha saído de um hipermercado quando foi abordado, logo os
assentos traseiros estavam lotados de sacolas e provavelmente alguma comida que
não precisasse ser cozida ou aquecida poderia ser encontrada. Voltou para o
opala e vasculhou as sacolas, jogando o que não julgava útil ora na terra ora
pelo interior no carro. Encontrou um pacote de pães, um pacote de salsichas e
uma lanterna grande, mesmo com a enorme lua na abóboda celeste, que garantia
razoável iluminação, enxergar poderia ser difícil e era bom ter uma lanterna ao
alcance. Após colocar o que foi coletado em uma única sacola plástica fechou as
portas do carro, colocou a chave no bolso do lado direito da calça e decidiu olhar
as demais casas do lugar que o lembrava dos filmes de Sérgio Leone. O vilarejo,
cujo nome não sabia, isso se tivesse algum, consistia em treze construções: a
pousada, uma igreja, com uma cruz que parecia inclinada para onde Silvio estava,
que ficava na direção das montanhas, e mais onze casas. As casas eram
padronizadas, todas possuíam a mesma pintura, um marrom tão forte que não
poderia ser encontrado na vegetação seca da região que nessa época do ano
sofreria ainda mais de sede com somente rápidas pancadas de chuvas raras,
varandas, uma janela grande o suficiente para exibir um eventual morador da
cintura para cima e uma porta com um número entalhado na madeira. Quando notou
a numeração nas casas voltou o olhar para a pousada e a igreja, também tinham
números, a igreja era o número treze e a pousada o doze, apesar de que a
pousada ficava no meio da fileira esquerda de construções, talvez a numeração
das construções indicasse a ordem em que foram feitas. O lugar todo era somente
isso, cinco casas e uma pousada do lado esquerdo, seis casa do lado direito e
uma igreja mais a frente entre as fileiras.
—
Bom, vou dormir na pousada mesmo. Pela manhã vou até a estrada com cuidado e
vejo se consigo roubar o carro de algum otário – cuspiu no chão, que absorveu a
sua saliva tamanha a seca que o afligia, ajeitou o seu revólver na cintura, que
estava municiado com suas últimas balas, e rumou para a pousada.
Antes
de cruzar a soleira da porta percebeu um detalhe estranho no cenário em que
estava, nenhuma construção estava com o mínimo de poeira cobrindo-a e o vento
sequer estava presente ao menos na forma de uma brisa. Isso não era algo que o
deixasse tão intrigado, mas sem dúvida era um detalhe que chamava a atenção.
Parecia que até mesmo a poeira tinha algum medo de ficar por ai e o vento devia
fazer um desvio como quem sabe o que pode lhe aguardar ali. Parecia um roteiro
de filme do Zé do Caixão ou talvez um desenho feito por qualquer outra mente
alimentada por um bizarro senso de superstição, mas o que era esse detalhe para
alguém que não acreditava em superstições e que rezava somente para o seu
revólver nunca errar o alvo? Isso era nada, era história da carochinha.
Quando
cruzou a soleira viu um balcão com uma plaquinha sobre ele que indicava “Recepção” à sua esquerda, uma porta no
fundo, uma escada à sua direita e no centro um tapete vermelho com uma mesinha,
na qual estava um vaso de flores com rosas há muito tempo mortas, e quatro
cadeiras de madeira ao seu redor. Tudo em volta parecia novo, exceto pelas
rosas cuja vida se esvaiu sem alguém para repor a sua água. O que será que
motivou o abandono desse local? O que quer que tenha causado a evacuação foi
muito recentemente, mesmo com uma moradia fechada a sujeira sempre encontrava
um caminho para adentrar. Foi até o balcão para averiguar o que tinha por lá,
talvez algo de valor pudesse ser encontrado e considerando que pretendia fugir
de Alagoas para a Bahia iria precisar de todo o dinheiro que pudesse conseguir.
Começar uma nova vida custava caro.
Caminhou
até o balcão e lá encontrou um livro de visitas grande que estava fechado e
cuja capa parecia ser de um couro tingido de preto, foi para trás do balcão e a
única coisa que achou ali foi uma caixa de papelão lacrada com durex. Pegou-a,
ela estava muito leve, e colou-a em cima do balcão, sacou o canivete que
portava no bolso esquerdo da calça, um canivete tático Smith & Wesson que
comprou numa loja de caça e pesca no centro de Maceió, rasgou o lacre e abriu a
caixa. Dentro dela tinha algumas fotografias em preto e branco de pessoas
trabalhando na roça e uma foto em especial de um grupo, dispostos na foto como
um time de futebol para um pôster, formado por onze crianças que deviam ter
idades entre oito à dezesseis, enfileiradas à frente, todas descalças e
vestidas com farrapos, uma mulher que mais parecia um daqueles esqueletos de
laboratório, atrás das crianças no meio, que apoiava as mãos numa enxada, e um
homem, ao lado direito da mulher, que segurava uma foice e usava um chapéu
grande de palha que cobria seu rosto, atrás da foto estava escrito “Minha família”. Deveria ser a foto da
família do dono do estabelecimento. Encontrou também um pequeno caderno com
anotações sobre a compra de provisões para a cozinha, a última anotação era de
vinte anos atrás. A última coisa que achou foi uma bíblia, jogou-a no chão sem
qualquer exame. Deixou a caixa ali mesmo e voltou-se para o livro de hospedes.
Abriu-o e uma mosca saiu dele, tão rápido que quase entrou na sua boca.
Abanando as mãos a expulsou de perto e pode continuar sua investigação da pousada
sem ser importunado. O livro de visitas estava completamente em branco, suas
páginas tinham uma coloração marrom, típica de papel reciclado. Antes de deixar
para trás a pousada seu dono deve ter levado o livro de registro de hospedes
com todas as páginas preenchidas, mas se fosse essa realmente a explicação para
o livro que via estar sem qualquer nome por que ele deixaria recordações de
família para trás? Concluiu que as fotos não deviam ser dele, talvez algum
hóspede tivesse esquecido e jamais retornando para reaver. Ao lado do livro
tinha uma caneta, como fazendo uma piada para si mesmo pegou-a e assinou no
livro o seu nome completo “Silvio Gomes
da Costa”. Uma brisa entrou pela porta o que o fez se virar, pois poderia
ser algum animal da região que ali entrou em busca de alimento e proteção
contra o frio noturno. Sorriu de sua própria reação e deixou a caneta cair de
sua mão, não haveria ninguém para reprender seu ato. Antes de subir para o
primeiro andar foi até os fundos, perto da porta sem qualquer sinalização, e
abriu-a, constatou que era a cozinha do lugar. A cozinha tinha um chão igual ao
da recepção, um azulejo branco, mas suas paredes ao contrário das paredes da
recepção não eram igualmente brancas e sim verdes. Talvez pudesse preparar as
salsichas de modo mais apropriado, mas com uma sondagem rápida pela cozinha,
que não era tão grande, não achou qualquer botijão de gás. Somente havia dois
fogões com oito bocas cada, lado a lado no canto direito, uma prateleira à sua
frente com utensílios de cozinhas, à sua esquerda quatro palletes que deviam
servir para guardar os sacos de arroz, feijão, macarrão e outras coisas que
pudessem ali ficar e próximo dos palletes havia um freezer branco. Começou a se
aproximar do freezer quando teve a impressão de ouvir o som de pancadas leves
vindas de dentro dele. Quando estava há menos de um metro dele teve a certeza
de que eram batidas. Não demonstravam serem batidas de desespero de algum
animal preso ali, as batidas eram pacientes, com um intervalo de tempo entre
elas exatamente igual. Foi aproximando a mão esquerda para abrir e descobrir o
que tinha dentro, tomando a precaução de deixar a mão direita no cabo do
revólver em sua cintura caso fosse necessário sacá-lo. As batidas continuavam
quando disse:
—
Tem alguém ai? – aquelas geralmente eram as últimas frases de incautos
adolescentes nos filmes de terror atuais, mas claramente aquilo não era um
filme de terror para que tivesse receio em falar isso.
Como
esperava não obteve resposta alguma, exceto as batidas frias. Tocou com a mão
esquerda na porta do freezer, as batidas pararam, retirou o revólver do coldre
e engatilhou-o, abriu-o empurrando a porta contra a parede e simultaneamente
afastou-se para evitar um ataque surpresa, melhor ser desconfiado demais do que
pensar que vive no país das maravilhas, contudo ao se afastar escorregou em
algo, não se lembrava do chão estar molhado, bateu com a cabeça no chão e foi
mergulhando numa escuridão, antes de desacordar conseguiu com muito esforço
levantar a cabeça o suficiente para enxergar o freezer, todavia o que ele
deveria ter visto não estava ali e sim na soleira da porta observando-o
pacientemente da mesma forma fria que um médico legista encara um cadáver.
Começou
a retomar a consciência, lentamente seus olhos foram se abrindo, sentia uma
forte dor na nuca e com cuidado levou as mãos até o foco da dor, tocou
delicadamente para evitar machucar-se ainda mais, caso a queda tivesse
ocasionado algum ferimento grave. Ao checar as mãos não viu sangue, o que já
era um pequeno alívio. Agora se deu conta de que estava deitado em uma cama de
solteiro.
—
Au! – parecia que uma agulha era espetada em sua cabeça – Quem me trouxe até
aqui? – girou sua cabeça para averiguar precisamente onde estava.
No
quarto tinha a cama, um armário embutido na parede, uma penteadeira com uma
televisão em cima, um banheiro que estava com a porta entreaberta e um quadro
torto defronte com onde havia despertado. Levantou-se, titubeou, caiu na cama.
Seu senso de equilíbrio foi afetado pela pancada na cabeça. Ficou sentado um
pouco mais até se recompor por completo. Ergueu-se e foi até próximo do quadro,
ajeitou-o e teve uma surpresa com a ilustração dele, franziu a testa e ficou
com o rosto há menos de um palmo de distância para confirmar o que via. O
quadro era uma versão macabra de um muito conhecido que já viu em alguns
filmes, aqueles dos cachorros jogando pôquer, mas nesse a cena era de cinco criaturas
com formas humanoides, peles vermelhas como se estivessem banhadas em sangue, o
sexo delas não dava para ser determinado, em um lugar muito escuro ao redor de
um caldeirão, alimentado por um fogo fraco, que emanava uma fumaça verde. As criaturas
aparentavam não possuírem glóbulos oculares, mas detendo-se com mais calma
soube que na verdade os olhos delas eram de um forte negrume, olhos incapazes
de transmitirem qualquer coisa a não ser vazio. Perdido nessa contemplação
Silvio achou que sob o papel do quadro algo se mexeu, aproximou-se ainda mais
até que seu nariz tocasse no quadro e repentinamente sentiu o centro do papel
se elevar alguns milímetros e afastou-se instantaneamente, foi então que uma
mão com unhas de dez centímetros brotou em sua direção e quase o alcançou,
contudo o papel do quadro se comportou como uma superfície elástica se moldando
ao formato da mão, e depois recuou para o quadro, mesmo assim Silvio não
pretendia ficar perto dele mais uma vez. Sua respiração ficou mais acelerada.
—
Ai! – mais uma agulha pareceu perfurar seu cérebro, dessa vez com mais profundidade
– Essa pancada deve ter mexido com minha cabeça – resmungou – Depois vou
conversar com o bastardo que resolveu me tirar de onde cai... – levou a mão
direita até onde o revólver ficava no coldre, mas para sua grande surpresa ela
não estava ali – Desgraça! – gritou a plenos pulmões.
Foi
até o banheiro do quarto e sem ver as demais coisas dirigiu-se até a pia, abriu
a torneira no máximo. Juntou as palmas das mãos em uma concha e a encheu, bebeu
a água com forte sabor ferruginoso e satisfez sua garganta seca. Olhou-se no
espelho e notou que estava completamente molhado de suor, seu cabelo preto e
curto estava grudado na sua testa, a pela branca estava ainda mais pálida e os
olhos verdes estavam com um tom doentio de amarelo. Pegou uma segunda concha de
água e jogou no rosto, ficou olhando no espelho a água escorrendo até molhar a
sua camiseta branca.
Pensou
sobre a vida de pistolagem que decidiu seguir e como tudo o trouxe até aqui,
tendo que fugir para continuar livre. Isso o irritava. O calor retornou ao
rosto. Ainda precisava jogar mais um pouco de água para refrescar o calor que
sentia e assim o fez, mas acidentalmente jogou água nos olhos e isso turvou sua
visão até que piscou várias vezes e se viu no espelho, todavia seus olhos
estavam negros como os das coisas no quadro. Ficou parado e se viu sorrindo no
espelho, gritou e deu um soco forte o suficiente para rachar o espelho em
dezenas de pedaços que ainda assim não se soltaram de sua moldura. Seu punho
começou a sangrar, grossas gotas de sangue estavam caindo.
—
Merda! – gritou, suspendeu a mão direita e ficou pressionando o pulso para
diminuir o sangramento.
Retornou
ao quarto e sentou-se na cama. Olhou para o bolso esquerdo da calça e viu que o
canivete ainda estava lá. Soltou o pulso, porém manteve a mão com o corte
levantada, ela parecia agora coberta por uma luva vermelha que estava
derretendo e manchando o lençol. Cortou um pedaço do lençol azul,
suficientemente grande para envolver o ferimento, e usou-o para estancar o
sangramento.
Agora
uma questão peculiar se formou em sua mente, enquanto levantava o olhar para a
lâmpada no teto, enfim disse:
—
Como aqui tem energia elétrica se não vi sequer um poste? – talvez fosse alguma
rede subterrânea ou um gerador, sabe-se lá onde, mas isso não era o mais
importante agora.
—
Eu vou sair daqui agora mesmo. Não quero sequer saber que diacho é isso! –
Ficou em pé e com muita raiva, tanta que as veias em seu pescoço estavam
salientes.
Segurando
o canivete com a mão esquerda e já alerta para qualquer outra coisa que
aparecesse, abriu a porta com a mão direita e saiu para o corredor.
Tinha
mais outros cinco quartos na pousada, mas nenhum deles tinha uma numeração. No
corredor, perto da escada, estavam pendurados na parede oito retratos,
divididos em duas fileiras de quatro horizontalmente. Foi caminhando rumo à
escadaria, precisava conseguir algum analgésico logo, a sua cabeça parecia
estar sendo perfurada por uma britadeira. Parou depois de alguns passos quando
notou que os retratos eram de suas vítimas, todas fotografadas com a expressão
que fizeram antes de seus últimos suspiros ao visualizarem o cano do revólver
mirando em suas cabeças, e o mais assustador era que os olhos se moviam para os
mais variados ângulos, fez menção de voltar os seus passos, mas antes disso os retratos
abriram seus lábios que sopravam ventos pútridos de encontro com aquele que foi
o algoz tantas vezes e começavam um lamento tão angustiante que o ar era
repelido aos poucos do ambiente e o coração de Silvio começou a bater mais
devagar, o canto soturno dos retratos era o canto da Banshee. Um enorme peso
invisível caiu nas costas de Silvio e ele desabou, estava agonizando no chão,
expelindo sangue pela boca e chorava de tão titânica que era a dor por todo o
corpo, sentia como se seus ossos estivessem criando espinhos que perfuravam a
sua carne toda. Olhou para trás e viu que a sua sombra estava se desligando de
si e se deslocando até a outra ponta do corredor, onde não havia qualquer
janela ou saída de incêndio. A sombra ficou ali parada, ainda rente ao chão por
alguns segundos, até que começou a se desprender do solo, gerando um som
semelhante com o de madeira sendo quebrada, até que ficou completamente ereta.
A escuridão que ela era foi gradualmente assumindo outra aparência, a forma
assumida era a do reflexo no espelho do banheiro. Silvio conseguiu reunir
forças suficientes para começar a rastejar pelo chão até a escada, pois o peso
colossal persistia em suas costas, como se a dor já não fosse martírio
suficiente. O seu gêmeo sombrio começou a abrir a boca e uma língua bifurcada saiu
dela, desceu até o chão e começou a se mover como uma anaconda em sua direção,
o deslocamento da língua era muito lento e isso sem dúvida alguma devia ser
proposital, pois sabia que a sua presa não iria conseguir fugir. A adrenalina
liberada pelo medo foi tão grande que soltou o canivete e passou a se locomover
mais rápido. Já estava prestes a começar a descida pela escada quando sentiu
algo gélido envolver seu calcanhar esquerdo, queimando a pele onde tocava, e
subindo. Forçou seu corpo mais para frente para livrar-se da língua e
conseguiu, contudo o impulso foi tão forte que o fez descer a escada
abruptamente rolando até cair no primeiro piso sem qualquer preparo e
depositando todo o peso na perna esquerda, causando uma fratura exposta do
fêmur. A dor foi excruciante e o choro daqueles que tiveram suas vidas ceifadas
não pelas mãos do destino, mas pelas mãos de um pistoleiro, ampliava toda a dor
e negatividade que estivesse em seu alcance.
—
Puta que pariu! – gritou cerrando os dentes numa tentativa de conter a dor.
Onde
estava o seu revólver? Ele poderia ser muito vital caso optasse pela saída de
emergência. Seria até mesmo uma morte poética e trágica perecer sob o jugo de
sua própria arma, talvez isso pudesse afastar os espíritos ou o que quer que
fossem, mas igualmente iria cuspi-lo deste mundo. Agora estava com as costas no
chão e viu oito seres translúcidos que vinham da direção da cozinha, todos os
homens que matou vestindo os paletós com os quais foram enterrados e, como se
saídos do túmulo agora mesmo, exibindo carcaças em já avançado estado de
decomposição, os olhos eram a única coisa que parecia intocada pelos vermes. Todos
estavam com os braços estendidos para ele e nos olhos demonstravam ódio, puro
ódio.
Mesmo
com a dor que sentia conseguiu ficar em pé, cambaleou até a porta de entrada,
cada passo era um suplicio inimaginável até o presente, se escapasse dali iria
se entregar na primeira delegacia que encontrasse e confessaria qualquer crime
do qual fosse acusado. Escapar dali era o que importava, depois poderia buscar
a redenção, a iluminação ou o que fosse! Poderia até mesmo acabar virando um
daqueles beatos que dão testemunho em programas de televisão!
Quando
chegou à porta segurou a maçaneta com a mão esquerda e girou-a, estava olhando
para o chão quando iria dar seu primeiro passo que foi interrompido pelo que
acabou de enxergar. Defronte a ele estava seu gêmeo sombrio com um cigarro já
quase no fim na boca. Com todo o medo que sentiu acabou se borrando nas calças,
sua capacidade de segurar a urina e as fezes lhe deu adeus naquele momento, e
disse:
—
O-o-o que é você-ê-ê-ê? – Perguntou gaguejando pelo nervosismo e sem mexer o
corpo.
A
coisa sombria sorriu, soltando fumaça pela brecha entre os seus dentes, e
disse:
—
O grande pistoleiro impiedoso e sem superstições borrou sua própria calça e
está com medo? Será que precisa de uma babá para trocar suas roupas? – falou
enquanto soltava a fumaça das tragadas pelo nariz, formando na mente de Silvio
a imagem de um dragão, não como aqueles dos filmes da Disney e sim como aquele
que era mencionado no livro de Apocalipse – Você pode me chamar de capeta,
coisa ruim, gêmeo malvado, aparição ou qualquer outra coisa que você seja capaz
de imaginar, ora bolas, pouco me importo com essas babaquices. Eu simplesmente
sou o pior. O pior para você ou qualquer outra pessoa que me encontre por aí,
meu chapa. Talvez você esteja quase concluindo que eu seja o azar, puro como a
melhor das cachaças, mas não sou isso. Sou pior! Você dificilmente irá
apreender o que realmente sou! Alguns dizem somente que... – jogou a bituca do
cigarro no chão e pisou nela, como se esmagasse um inseto – sou algo pior que
sempre pode acontecer! – deu um sopro de fumaça, a nuvem de câncer ficou entre
eles, como uma última barreira, antes dela se dispersar a coisa sombria agarrou
Silvio pelo cabelo e braço esquerdo e cravou os dentes em seu pescoço. Sangue
esguichou no tapete da recepção e foi absorvido enquanto os mortos largavam aos
ventos suas lamúrias e assistiam tudo. O ceifador foi ceifado.
Muito bom o conto, vc consegue narrar muito bem os fatos e descrever com precisão os lugares, eu tenho a maior dificuldade em fazer isso, constantemente tenho que revisar meu livro para colocar mais detalhes nele... acho isso muito difícil.
ResponderExcluirbjos e bom final de semana
Obrigado pelo comentário, Fernanda. É muito importante isso porque assim sempre posso melhorar minha escrita. Nunca me preocupei mesmo em colocar detalhes no texto, acho que fiquei assim porque jogo RPG há oito anos e sou um jogador que gosta muito de detalhar as ações, além disso sou fã de Stephen King, aí já viu né... kkkkkk
ExcluirBeijos e excelente final de semana para ti!
P.S: Quando lançar seu livro concede uma entrevista pro blog? ;)