sábado, 21 de abril de 2012

Conto: Sempre Pode Acontecer Algo Pior


Silvio estava fugindo da policia em alta velocidade, com um opala roubado em Maceió, capital de Alagoas, por uma estrada bastante danificada próxima do Município de Piranhas. Ele era um pistoleiro procurado por oito assassinatos na capital e também era suspeito do assassinato de um juiz, o que agravava ainda mais sua situação perante a lei. A perseguição começou após ter acelerado alguns quilômetros atrás quando visualizou uma blitz, para sua sorte conseguiu furar a fiscalização porque havia somente um veículo da policia militar cuidando dessa tarefa e pelo estado deplorável dela, com evidentes partes enferrujadas e dois dos quatro pneus carecas, concluía que logo mais iria conseguir despistar os tiras ou “cinzentos” como costumava chamar devido à cor de seus uniformes. Depois de dez minutos com os cinzentos em seu encalço viu que a gasolina do carro já estava acabando e logo iria parar, considerando que o reforço policial provavelmente já havia sido requisitado precisava urgentemente achar algum lugar para se esconder, mas para onde ir numa autoestrada cercada por pequenas montanhas em uma terra de solo árido? Teria de arrumar uma solução o mais rápido possível!

Foi estabelecida uma grande distância da viatura, suficiente para ficar fora do alcance da visão dos agentes, quando notou uma trilha que já estava quase completamente coberta por capim seco, não pensou duas vezes, entrou nessa trilha, não quis sequer pensar aonde ela poderia levar, queria somente fugir da prisão. Os policiais passaram direto pela trilha semiocultada. O opala começou a anunciar que iria parar instantes após ter tomado a trilha para sabe Deus onde, dando pequenos trancos, quando Silvio viu há mais uns quinhentos metros à frente um pequeno vilarejo, muito pequeno mesmo, parecia ter somente uma rua com construções pelos lados, ao menos era isso que conseguia enxergar. O último tranco do veículo foi tão forte que quase o fez bater com a cabeça no para-brisa, bateu no volante com os dois punhos fechados num gesto de retribuição. Desceu do carro olhando pelo caminho de onde veio, nada mais estava lhe seguindo, uma preocupação a menos. Como o carro tinha parado teve de empurrá-lo para o vilarejo, afinal se o veículo fosse avistado sua localização seria denunciada e problemas iriam aparecer, não queria abusar da sorte duas vezes seguidas. O dia estava chegando ao fim, a lua já podia ser vista no céu, era lua cheia, graças ao crepúsculo a labuta de empurrar sozinho o carro foi mais amena, mas não chegou a ser fácil. A sua constituição física era quase a de um homem doente, muito magro, tão magro que quando sorria ao invés de ânimo transmitia medo, pois ao verem isso as pessoas só tinham pensamentos e sentimentos sobre morte e obviamente o vício em tabaco, fumava desde os treze anos e agora tinha quarenta, não o tornava um atleta. A tarefa de empurrar o veículo teve de ser intercalada com alguns intervalos para recuperar o fôlego e tosses tão fortes que pareciam rasgar a sua garganta que estava sedenta por um pingo de água.
O carro foi colocado por trás de uma casa grande de primeiro andar com uma faixada sem adornos, uma pintura vermelha e uma placa acima da entrada que dizia “Pousada descansem bem”. De frente para a pousada falou:
— Oi? Alguém em casa? – nenhuma resposta veio, pela absurda calmaria que estava ali chegou à conclusão que deveria ser um lugar abandonado.
Como a noite já havia chegado teria de ficar nesse lugar, porque deduziu que todos os policiais que estivessem nas estradas das cidades vizinhas já estavam alertados quanto à sua presença na região e deviam pensar que ele tentaria fugir do estado durante a noite, o cerco sem dúvida alguma deveria estar sendo reforçado e por isso era necessário deixar a poeira assentar. Por sorte sua o dono do carro tinha saído de um hipermercado quando foi abordado, logo os assentos traseiros estavam lotados de sacolas e provavelmente alguma comida que não precisasse ser cozida ou aquecida poderia ser encontrada. Voltou para o opala e vasculhou as sacolas, jogando o que não julgava útil ora na terra ora pelo interior no carro. Encontrou um pacote de pães, um pacote de salsichas e uma lanterna grande, mesmo com a enorme lua na abóboda celeste, que garantia razoável iluminação, enxergar poderia ser difícil e era bom ter uma lanterna ao alcance. Após colocar o que foi coletado em uma única sacola plástica fechou as portas do carro, colocou a chave no bolso do lado direito da calça e decidiu olhar as demais casas do lugar que o lembrava dos filmes de Sérgio Leone. O vilarejo, cujo nome não sabia, isso se tivesse algum, consistia em treze construções: a pousada, uma igreja, com uma cruz que parecia inclinada para onde Silvio estava, que ficava na direção das montanhas, e mais onze casas. As casas eram padronizadas, todas possuíam a mesma pintura, um marrom tão forte que não poderia ser encontrado na vegetação seca da região que nessa época do ano sofreria ainda mais de sede com somente rápidas pancadas de chuvas raras, varandas, uma janela grande o suficiente para exibir um eventual morador da cintura para cima e uma porta com um número entalhado na madeira. Quando notou a numeração nas casas voltou o olhar para a pousada e a igreja, também tinham números, a igreja era o número treze e a pousada o doze, apesar de que a pousada ficava no meio da fileira esquerda de construções, talvez a numeração das construções indicasse a ordem em que foram feitas. O lugar todo era somente isso, cinco casas e uma pousada do lado esquerdo, seis casa do lado direito e uma igreja mais a frente entre as fileiras.
— Bom, vou dormir na pousada mesmo. Pela manhã vou até a estrada com cuidado e vejo se consigo roubar o carro de algum otário – cuspiu no chão, que absorveu a sua saliva tamanha a seca que o afligia, ajeitou o seu revólver na cintura, que estava municiado com suas últimas balas, e rumou para a pousada.
Antes de cruzar a soleira da porta percebeu um detalhe estranho no cenário em que estava, nenhuma construção estava com o mínimo de poeira cobrindo-a e o vento sequer estava presente ao menos na forma de uma brisa. Isso não era algo que o deixasse tão intrigado, mas sem dúvida era um detalhe que chamava a atenção. Parecia que até mesmo a poeira tinha algum medo de ficar por ai e o vento devia fazer um desvio como quem sabe o que pode lhe aguardar ali. Parecia um roteiro de filme do Zé do Caixão ou talvez um desenho feito por qualquer outra mente alimentada por um bizarro senso de superstição, mas o que era esse detalhe para alguém que não acreditava em superstições e que rezava somente para o seu revólver nunca errar o alvo? Isso era nada, era história da carochinha.
Quando cruzou a soleira viu um balcão com uma plaquinha sobre ele que indicava “Recepção” à sua esquerda, uma porta no fundo, uma escada à sua direita e no centro um tapete vermelho com uma mesinha, na qual estava um vaso de flores com rosas há muito tempo mortas, e quatro cadeiras de madeira ao seu redor. Tudo em volta parecia novo, exceto pelas rosas cuja vida se esvaiu sem alguém para repor a sua água. O que será que motivou o abandono desse local? O que quer que tenha causado a evacuação foi muito recentemente, mesmo com uma moradia fechada a sujeira sempre encontrava um caminho para adentrar. Foi até o balcão para averiguar o que tinha por lá, talvez algo de valor pudesse ser encontrado e considerando que pretendia fugir de Alagoas para a Bahia iria precisar de todo o dinheiro que pudesse conseguir. Começar uma nova vida custava caro.
Caminhou até o balcão e lá encontrou um livro de visitas grande que estava fechado e cuja capa parecia ser de um couro tingido de preto, foi para trás do balcão e a única coisa que achou ali foi uma caixa de papelão lacrada com durex. Pegou-a, ela estava muito leve, e colou-a em cima do balcão, sacou o canivete que portava no bolso esquerdo da calça, um canivete tático Smith & Wesson que comprou numa loja de caça e pesca no centro de Maceió, rasgou o lacre e abriu a caixa. Dentro dela tinha algumas fotografias em preto e branco de pessoas trabalhando na roça e uma foto em especial de um grupo, dispostos na foto como um time de futebol para um pôster, formado por onze crianças que deviam ter idades entre oito à dezesseis, enfileiradas à frente, todas descalças e vestidas com farrapos, uma mulher que mais parecia um daqueles esqueletos de laboratório, atrás das crianças no meio, que apoiava as mãos numa enxada, e um homem, ao lado direito da mulher, que segurava uma foice e usava um chapéu grande de palha que cobria seu rosto, atrás da foto estava escrito “Minha família”. Deveria ser a foto da família do dono do estabelecimento. Encontrou também um pequeno caderno com anotações sobre a compra de provisões para a cozinha, a última anotação era de vinte anos atrás. A última coisa que achou foi uma bíblia, jogou-a no chão sem qualquer exame. Deixou a caixa ali mesmo e voltou-se para o livro de hospedes. Abriu-o e uma mosca saiu dele, tão rápido que quase entrou na sua boca. Abanando as mãos a expulsou de perto e pode continuar sua investigação da pousada sem ser importunado. O livro de visitas estava completamente em branco, suas páginas tinham uma coloração marrom, típica de papel reciclado. Antes de deixar para trás a pousada seu dono deve ter levado o livro de registro de hospedes com todas as páginas preenchidas, mas se fosse essa realmente a explicação para o livro que via estar sem qualquer nome por que ele deixaria recordações de família para trás? Concluiu que as fotos não deviam ser dele, talvez algum hóspede tivesse esquecido e jamais retornando para reaver. Ao lado do livro tinha uma caneta, como fazendo uma piada para si mesmo pegou-a e assinou no livro o seu nome completo “Silvio Gomes da Costa”. Uma brisa entrou pela porta o que o fez se virar, pois poderia ser algum animal da região que ali entrou em busca de alimento e proteção contra o frio noturno. Sorriu de sua própria reação e deixou a caneta cair de sua mão, não haveria ninguém para reprender seu ato. Antes de subir para o primeiro andar foi até os fundos, perto da porta sem qualquer sinalização, e abriu-a, constatou que era a cozinha do lugar. A cozinha tinha um chão igual ao da recepção, um azulejo branco, mas suas paredes ao contrário das paredes da recepção não eram igualmente brancas e sim verdes. Talvez pudesse preparar as salsichas de modo mais apropriado, mas com uma sondagem rápida pela cozinha, que não era tão grande, não achou qualquer botijão de gás. Somente havia dois fogões com oito bocas cada, lado a lado no canto direito, uma prateleira à sua frente com utensílios de cozinhas, à sua esquerda quatro palletes que deviam servir para guardar os sacos de arroz, feijão, macarrão e outras coisas que pudessem ali ficar e próximo dos palletes havia um freezer branco. Começou a se aproximar do freezer quando teve a impressão de ouvir o som de pancadas leves vindas de dentro dele. Quando estava há menos de um metro dele teve a certeza de que eram batidas. Não demonstravam serem batidas de desespero de algum animal preso ali, as batidas eram pacientes, com um intervalo de tempo entre elas exatamente igual. Foi aproximando a mão esquerda para abrir e descobrir o que tinha dentro, tomando a precaução de deixar a mão direita no cabo do revólver em sua cintura caso fosse necessário sacá-lo. As batidas continuavam quando disse:
— Tem alguém ai? – aquelas geralmente eram as últimas frases de incautos adolescentes nos filmes de terror atuais, mas claramente aquilo não era um filme de terror para que tivesse receio em falar isso.
Como esperava não obteve resposta alguma, exceto as batidas frias. Tocou com a mão esquerda na porta do freezer, as batidas pararam, retirou o revólver do coldre e engatilhou-o, abriu-o empurrando a porta contra a parede e simultaneamente afastou-se para evitar um ataque surpresa, melhor ser desconfiado demais do que pensar que vive no país das maravilhas, contudo ao se afastar escorregou em algo, não se lembrava do chão estar molhado, bateu com a cabeça no chão e foi mergulhando numa escuridão, antes de desacordar conseguiu com muito esforço levantar a cabeça o suficiente para enxergar o freezer, todavia o que ele deveria ter visto não estava ali e sim na soleira da porta observando-o pacientemente da mesma forma fria que um médico legista encara um cadáver.
Começou a retomar a consciência, lentamente seus olhos foram se abrindo, sentia uma forte dor na nuca e com cuidado levou as mãos até o foco da dor, tocou delicadamente para evitar machucar-se ainda mais, caso a queda tivesse ocasionado algum ferimento grave. Ao checar as mãos não viu sangue, o que já era um pequeno alívio. Agora se deu conta de que estava deitado em uma cama de solteiro.
— Au! – parecia que uma agulha era espetada em sua cabeça – Quem me trouxe até aqui? – girou sua cabeça para averiguar precisamente onde estava.
No quarto tinha a cama, um armário embutido na parede, uma penteadeira com uma televisão em cima, um banheiro que estava com a porta entreaberta e um quadro torto defronte com onde havia despertado. Levantou-se, titubeou, caiu na cama. Seu senso de equilíbrio foi afetado pela pancada na cabeça. Ficou sentado um pouco mais até se recompor por completo. Ergueu-se e foi até próximo do quadro, ajeitou-o e teve uma surpresa com a ilustração dele, franziu a testa e ficou com o rosto há menos de um palmo de distância para confirmar o que via. O quadro era uma versão macabra de um muito conhecido que já viu em alguns filmes, aqueles dos cachorros jogando pôquer, mas nesse a cena era de cinco criaturas com formas humanoides, peles vermelhas como se estivessem banhadas em sangue, o sexo delas não dava para ser determinado, em um lugar muito escuro ao redor de um caldeirão, alimentado por um fogo fraco, que emanava uma fumaça verde. As criaturas aparentavam não possuírem glóbulos oculares, mas detendo-se com mais calma soube que na verdade os olhos delas eram de um forte negrume, olhos incapazes de transmitirem qualquer coisa a não ser vazio. Perdido nessa contemplação Silvio achou que sob o papel do quadro algo se mexeu, aproximou-se ainda mais até que seu nariz tocasse no quadro e repentinamente sentiu o centro do papel se elevar alguns milímetros e afastou-se instantaneamente, foi então que uma mão com unhas de dez centímetros brotou em sua direção e quase o alcançou, contudo o papel do quadro se comportou como uma superfície elástica se moldando ao formato da mão, e depois recuou para o quadro, mesmo assim Silvio não pretendia ficar perto dele mais uma vez. Sua respiração ficou mais acelerada.
— Ai! – mais uma agulha pareceu perfurar seu cérebro, dessa vez com mais profundidade – Essa pancada deve ter mexido com minha cabeça – resmungou – Depois vou conversar com o bastardo que resolveu me tirar de onde cai... – levou a mão direita até onde o revólver ficava no coldre, mas para sua grande surpresa ela não estava ali – Desgraça! – gritou a plenos pulmões.
Foi até o banheiro do quarto e sem ver as demais coisas dirigiu-se até a pia, abriu a torneira no máximo. Juntou as palmas das mãos em uma concha e a encheu, bebeu a água com forte sabor ferruginoso e satisfez sua garganta seca. Olhou-se no espelho e notou que estava completamente molhado de suor, seu cabelo preto e curto estava grudado na sua testa, a pela branca estava ainda mais pálida e os olhos verdes estavam com um tom doentio de amarelo. Pegou uma segunda concha de água e jogou no rosto, ficou olhando no espelho a água escorrendo até molhar a sua camiseta branca.
Pensou sobre a vida de pistolagem que decidiu seguir e como tudo o trouxe até aqui, tendo que fugir para continuar livre. Isso o irritava. O calor retornou ao rosto. Ainda precisava jogar mais um pouco de água para refrescar o calor que sentia e assim o fez, mas acidentalmente jogou água nos olhos e isso turvou sua visão até que piscou várias vezes e se viu no espelho, todavia seus olhos estavam negros como os das coisas no quadro. Ficou parado e se viu sorrindo no espelho, gritou e deu um soco forte o suficiente para rachar o espelho em dezenas de pedaços que ainda assim não se soltaram de sua moldura. Seu punho começou a sangrar, grossas gotas de sangue estavam caindo.
— Merda! – gritou, suspendeu a mão direita e ficou pressionando o pulso para diminuir o sangramento.
Retornou ao quarto e sentou-se na cama. Olhou para o bolso esquerdo da calça e viu que o canivete ainda estava lá. Soltou o pulso, porém manteve a mão com o corte levantada, ela parecia agora coberta por uma luva vermelha que estava derretendo e manchando o lençol. Cortou um pedaço do lençol azul, suficientemente grande para envolver o ferimento, e usou-o para estancar o sangramento.
Agora uma questão peculiar se formou em sua mente, enquanto levantava o olhar para a lâmpada no teto, enfim disse:
— Como aqui tem energia elétrica se não vi sequer um poste? – talvez fosse alguma rede subterrânea ou um gerador, sabe-se lá onde, mas isso não era o mais importante agora.
— Eu vou sair daqui agora mesmo. Não quero sequer saber que diacho é isso! – Ficou em pé e com muita raiva, tanta que as veias em seu pescoço estavam salientes.
Segurando o canivete com a mão esquerda e já alerta para qualquer outra coisa que aparecesse, abriu a porta com a mão direita e saiu para o corredor.
Tinha mais outros cinco quartos na pousada, mas nenhum deles tinha uma numeração. No corredor, perto da escada, estavam pendurados na parede oito retratos, divididos em duas fileiras de quatro horizontalmente. Foi caminhando rumo à escadaria, precisava conseguir algum analgésico logo, a sua cabeça parecia estar sendo perfurada por uma britadeira. Parou depois de alguns passos quando notou que os retratos eram de suas vítimas, todas fotografadas com a expressão que fizeram antes de seus últimos suspiros ao visualizarem o cano do revólver mirando em suas cabeças, e o mais assustador era que os olhos se moviam para os mais variados ângulos, fez menção de voltar os seus passos, mas antes disso os retratos abriram seus lábios que sopravam ventos pútridos de encontro com aquele que foi o algoz tantas vezes e começavam um lamento tão angustiante que o ar era repelido aos poucos do ambiente e o coração de Silvio começou a bater mais devagar, o canto soturno dos retratos era o canto da Banshee. Um enorme peso invisível caiu nas costas de Silvio e ele desabou, estava agonizando no chão, expelindo sangue pela boca e chorava de tão titânica que era a dor por todo o corpo, sentia como se seus ossos estivessem criando espinhos que perfuravam a sua carne toda. Olhou para trás e viu que a sua sombra estava se desligando de si e se deslocando até a outra ponta do corredor, onde não havia qualquer janela ou saída de incêndio. A sombra ficou ali parada, ainda rente ao chão por alguns segundos, até que começou a se desprender do solo, gerando um som semelhante com o de madeira sendo quebrada, até que ficou completamente ereta. A escuridão que ela era foi gradualmente assumindo outra aparência, a forma assumida era a do reflexo no espelho do banheiro. Silvio conseguiu reunir forças suficientes para começar a rastejar pelo chão até a escada, pois o peso colossal persistia em suas costas, como se a dor já não fosse martírio suficiente. O seu gêmeo sombrio começou a abrir a boca e uma língua bifurcada saiu dela, desceu até o chão e começou a se mover como uma anaconda em sua direção, o deslocamento da língua era muito lento e isso sem dúvida alguma devia ser proposital, pois sabia que a sua presa não iria conseguir fugir. A adrenalina liberada pelo medo foi tão grande que soltou o canivete e passou a se locomover mais rápido. Já estava prestes a começar a descida pela escada quando sentiu algo gélido envolver seu calcanhar esquerdo, queimando a pele onde tocava, e subindo. Forçou seu corpo mais para frente para livrar-se da língua e conseguiu, contudo o impulso foi tão forte que o fez descer a escada abruptamente rolando até cair no primeiro piso sem qualquer preparo e depositando todo o peso na perna esquerda, causando uma fratura exposta do fêmur. A dor foi excruciante e o choro daqueles que tiveram suas vidas ceifadas não pelas mãos do destino, mas pelas mãos de um pistoleiro, ampliava toda a dor e negatividade que estivesse em seu alcance.
— Puta que pariu! – gritou cerrando os dentes numa tentativa de conter a dor.
Onde estava o seu revólver? Ele poderia ser muito vital caso optasse pela saída de emergência. Seria até mesmo uma morte poética e trágica perecer sob o jugo de sua própria arma, talvez isso pudesse afastar os espíritos ou o que quer que fossem, mas igualmente iria cuspi-lo deste mundo. Agora estava com as costas no chão e viu oito seres translúcidos que vinham da direção da cozinha, todos os homens que matou vestindo os paletós com os quais foram enterrados e, como se saídos do túmulo agora mesmo, exibindo carcaças em já avançado estado de decomposição, os olhos eram a única coisa que parecia intocada pelos vermes. Todos estavam com os braços estendidos para ele e nos olhos demonstravam ódio, puro ódio.
Mesmo com a dor que sentia conseguiu ficar em pé, cambaleou até a porta de entrada, cada passo era um suplicio inimaginável até o presente, se escapasse dali iria se entregar na primeira delegacia que encontrasse e confessaria qualquer crime do qual fosse acusado. Escapar dali era o que importava, depois poderia buscar a redenção, a iluminação ou o que fosse! Poderia até mesmo acabar virando um daqueles beatos que dão testemunho em programas de televisão!
Quando chegou à porta segurou a maçaneta com a mão esquerda e girou-a, estava olhando para o chão quando iria dar seu primeiro passo que foi interrompido pelo que acabou de enxergar. Defronte a ele estava seu gêmeo sombrio com um cigarro já quase no fim na boca. Com todo o medo que sentiu acabou se borrando nas calças, sua capacidade de segurar a urina e as fezes lhe deu adeus naquele momento, e disse:
— O-o-o que é você-ê-ê-ê? – Perguntou gaguejando pelo nervosismo e sem mexer o corpo.
A coisa sombria sorriu, soltando fumaça pela brecha entre os seus dentes, e disse:
— O grande pistoleiro impiedoso e sem superstições borrou sua própria calça e está com medo? Será que precisa de uma babá para trocar suas roupas? – falou enquanto soltava a fumaça das tragadas pelo nariz, formando na mente de Silvio a imagem de um dragão, não como aqueles dos filmes da Disney e sim como aquele que era mencionado no livro de Apocalipse – Você pode me chamar de capeta, coisa ruim, gêmeo malvado, aparição ou qualquer outra coisa que você seja capaz de imaginar, ora bolas, pouco me importo com essas babaquices. Eu simplesmente sou o pior. O pior para você ou qualquer outra pessoa que me encontre por aí, meu chapa. Talvez você esteja quase concluindo que eu seja o azar, puro como a melhor das cachaças, mas não sou isso. Sou pior! Você dificilmente irá apreender o que realmente sou! Alguns dizem somente que... – jogou a bituca do cigarro no chão e pisou nela, como se esmagasse um inseto – sou algo pior que sempre pode acontecer! – deu um sopro de fumaça, a nuvem de câncer ficou entre eles, como uma última barreira, antes dela se dispersar a coisa sombria agarrou Silvio pelo cabelo e braço esquerdo e cravou os dentes em seu pescoço. Sangue esguichou no tapete da recepção e foi absorvido enquanto os mortos largavam aos ventos suas lamúrias e assistiam tudo. O ceifador foi ceifado.

2 comentários:

  1. Muito bom o conto, vc consegue narrar muito bem os fatos e descrever com precisão os lugares, eu tenho a maior dificuldade em fazer isso, constantemente tenho que revisar meu livro para colocar mais detalhes nele... acho isso muito difícil.
    bjos e bom final de semana

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    1. Obrigado pelo comentário, Fernanda. É muito importante isso porque assim sempre posso melhorar minha escrita. Nunca me preocupei mesmo em colocar detalhes no texto, acho que fiquei assim porque jogo RPG há oito anos e sou um jogador que gosta muito de detalhar as ações, além disso sou fã de Stephen King, aí já viu né... kkkkkk

      Beijos e excelente final de semana para ti!

      P.S: Quando lançar seu livro concede uma entrevista pro blog? ;)

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