quinta-feira, 26 de abril de 2012

Conto: O Tormento de Não-Ser


Olá, leitores do Policial da Biblioteca! Hoje, lhes entrego para leitura um novo conto meu. Esta curta narração foi inspirada em um fato que a Priscila me contou e para tornar a leitura do conto especial resolvi conferir um som ao texto, por isso coloquei abaixo um vídeo. Deem play e leiam o conto.



Fonte do vídeo: Youtube (As cenas do vídeo são do filme "Donnie Darko")

O Tormento de Não-Ser

Era um Domingo anormalmente quente em Maceió e, considerando que esta é uma capital com elevadas temperaturas durante a maior parte do ano, isto significa que a temperatura beirava os 41ºC. 
Prantos se mesclavam com o som de um velho ventilador com as hélices cobertas de uma camada de poeira que inutilmente foi colocado na sala de uma casa do centro da cidade para tentar diminuir o desconforto causado pelo calor.
Velas grossas queimavam ao redor do singelo caixão feito de uma madeira barata, afinal a família do falecido não era dotada de fartos recursos. Os lírios brancos que ornamentavam o interior do ataúde, deixando somente o rosto do jovem garoto de apenas dezessete anos de idade exposto, já estavam adquirindo algumas manchas negras, como se a própria morte estivesse aos poucos se alastrando a partir do garoto.
 Algumas pessoas já estavam com seus olhos vermelhos por causa do excesso de lágrimas vertidas e suas faces pareciam mais secas do que no momento em que entraram no velório. Esse era o efeito do luto, um momento em que vivos e mortos entram em contato com o que o narrador que vos fala chama de ‘Ponto do Outro Lado e Aqui’. Esse é um momento onde o morto tem de continuar sua jornada e os vivos, se forem fortes, devem prosseguir com a vida, ao menos é isso o que prega o pensamento comum.
Uma senhora, a mãe do falecido, estava sentada em uma cadeira de balanço vermelha, ao lado esquerdo do caixão, rodeada de pessoas que por sinceros pesares ou unicamente por convenção social estavam presentes para dar os pêsames.
Na entrada da casa estava o pai do garoto, trajando um terno todo preto que foi alugado especialmente para a ocasião. Sua excessiva formalidade nas vestimentas em uma situação tão trágica só era superada pela frieza em sua face. Nunca amou verdadeiramente o seu filho, mas, como todos os pais costumam fazer, tinha planos para o homem que um dia seu único filho seria.
Em uma pequena mesa ao seu lado havia um grande caderno preto no qual as pessoas que chegavam anotavam seus nomes. Qual a finalidade desse caderno? Todos ali aceitavam assinar, mas ninguém saberia explicar, assim como este humilde narrador.
O pobre garoto que jazia inerte, sem qualquer traço do vigor que teve em vida, morreu em um daqueles caprichos malignos do destino. Houve um tiroteio próximo de sua escola e quando se abaixou para pegar uma moeda que havia derrubado uma bala traçou o caminho direto até a sua cabeça. Foi uma morte rápida, a vítima sequer teve como possuir consciência de que sua vida acabava.  Era estranho como algumas pessoas acreditavam como a morte podia suavizar a expressão dos falecidos, talvez isso seja verdade para os idosos e aqueles que sofrem durante os últimos minutos de vida, mas o que pensar quando a situação se apresenta para alguém na flor da idade e saúde plena?
Podemos dizer que foi uma morte gentil ou piedosa? Como podemos dizer que ceifar a vida de uma flor que ainda era semente é algo justo? Talvez alguns se perguntem onde está a justiça da vida nisso tudo? Confesso que não sei o que posso comer amanhã, mas de uma coisa sei...nem sempre a vida é justa e na maioria das vezes é feita de uma soma de pequenos acasos que estão muito além de nosso controle.
A fumaça das velas insistia em não se dissipar e ficava se concentrando no teto da casa e formas invisíveis para os olhos humanos bailavam ao som das lágrimas nessa nuvem, fruto de mau agouro. Eram os anjos da morte.
— Por quê? Diga-me a razão santo Deus! – disse a senhora da cadeira de balanço vermelha com a voz embargada pelo nariz que estava entupido devido ao choro ininterrupto – Eu quero meu bebê de volta! Você não pode fazer isto! – cobriu agora o rosto com as mãos, como se isto pudesse velar o sofrimento que abrigava e talvez deixar as coisas mais suportáveis.
O seu marido se manteve na mesma posição na entrada da casa. A severidade não foi quebrada por um segundo sequer.
— Mulher! Se comporte direito! E deixe de dar vexame – foi o que o homem pensou ao dar um único olhar para ela e depois já se voltar para um novo visitante que chegava.
Você talvez esteja se perguntando qual o nome dos personagens, estou certo? Mas do que adianta dar nomes aos bois quando o que realmente importa é o sofrimento? Somos um só em nossa tristeza e infortúnios inevitáveis como a própria morte. Se chame você Ricardo ou Patrícia, por exemplo, saiba que seu destino final é alimentar a terra. Talvez alguma árvore possa crescer sobre o seu túmulo. Logo, acho que podemos pular tais detalhes. Estamos acertados?
Durante a tarde tudo seguiu os mesmos moldes da manhã, desejos de pêsames de dezenas de pessoas, prantos, palavras lamuriosas da mãe e inexpressividade do pai, além do calor infernal que só amainou no começo da noite.
Quando o relógio digital em uma das paredes marcou dezoito horas a senhora saiu da cadeira de balanço e se dirigiu aos fundos da casa. Quando retornou abraçava em seus braços um álbum de fotografias que começou a mostrar para todos os presentes.
 Comentários sobre como o bebê dela era bonito, bom filho, educado com todos, inteligente e em como dizia com o peito estufado de alegria que um dia seria diretor de cinema e faria grandes filmes de terror, mesmo sabendo que no Brasil esse é um gênero pouco valorizado no cinema, eram os assuntos enquanto com seus dedos marcados pelo labor doméstico contínuo indicava algumas fotografias. Assim foi até que o relógio marcasse 20:00 e o lugar fosse esvaziando.
No fim só ficaram a mulher, seu marido e o filho em seu caixão. Como moravam sozinhos iriam enfrentar a madrugada igualmente sozinhos.
Sem trocar uma palavra com a esposa o homem foi para o seu quarto e deitou-se na cama sem ter a preocupação de antes tirar o paletó. Mesmo com sua expressão de pedra, por dentro estava tão minado quanto a mulher. Era tarde demais para o seu arrependimento. O tempo para consertar os seus erros com o filho passou e não poderia retornar. Teria de aguentar este fardo até o fim de seus dias, acontecimento que provavelmente não demoraria muito, considerando que sofria de um problema de coração ainda não diagnosticado. Adormeceu.
Na sala a mulher sentou-se na cadeira e começou a se balançar. Como a cadeira era velha produzia alguns rangidos. Sua cota de lágrimas diárias parecia já ter se esgotado. Seu rosto estava envolvido pela escuridão da sala e aquele vazio só era quebrado pelo insistente som de um grilo que parecia vir de todas as direções, mas como isto não chegava a incomodá-la tanto não se deu ao trabalho de levantar e conduzir uma busca ao inseto.
De onde estava olhou para o rosto do filho que por um breve instante parecia estar voltado para ela e começou a cantarolar uma canção que costumava usar para embalá-lo quando era um recém-nascido.

O Cravo brigou com a rosa
Debaixo de uma sacada
O Cravo ficou ferido
E a Rosa despedaçada

O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitar
O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs-se a chorar

Outras cantigas foram usadas para embalar o sono eterno de seu amado filho antes que suas pálpebras começassem a pesar e o sono não pudesse ser mais vencido. Adormeceu.

Em uma rua próxima da casa uma brisa surgiu como mágica de uma encruzilhada e começou a percorrer o caminho até a residência onde estava o caixão do jovem. A brisa era mais gélida do que qualquer coisa existente no mundo e por onde passava deixava uma fina camada de gelo e quando roçava em alguma planta ela morria instantaneamente.
Não é necessário, creio eu, dizer que para um ser humano o toque dessa brisa produziria efeitos desastrosos. A morte? Não, provavelmente algo pior que isso. Acreditem, há coisas piores que a morte. Sei que parece clichê, mas é a verdade.

A brisa gélida adentrou a sala da casa pela fechadura da porta e sua aura invernal fez os vidros trincarem. Como uma cobra ela rastejou pelo chão até as pernas da mulher mergulhada no sono e por alguns minutos se deteve ali, estava perscrutando o coração dela. Depois subiu até o caixão e começou a adentrar o invólucro, que um dia foi um jovem amável, pelos ouvidos, nariz e boca produzindo um silvo como o da cascavel.

O som do grilo parou. Tudo estava na mais absoluta quietude. O próprio mundo parecia ter parado. Foi então que o tórax, que abrigava pulmões que jamais retornariam a sugar o ar, subiu e depois voltou para o ponto de descanso. A boca se abriu lentamente, exibindo uma língua inchada e branca como papel. O cadáver do garoto começou a se erguer até ficar sentado no caixão. Abriu os olhos, agora eles eram dotados de um verde cinzento. Alguns lírios caíram no chão. O cadáver saiu do caixão e se prostrou em frente à mãe. Ele exalava o perfume dos lírios e formol.

— Ma-mãe – falou com a voz trêmula – Eu voltei ma-mãe. Você me chamou e eu retornei! Abrace-me... – a coisa arrastou seus pés como um daqueles mortos-vivos nos filmes de George A. Romero. Ela despertou, mas não conseguiu emitir qualquer grito – Senti tanto a sua falta, ma-mãe. Eu quero tê-la junto de mim. Não quero mais me separar de você. Quero você dentro de mim, ma-mãe – a coisa levou a boca até o pescoço dela e mordeu. Arrancou um grande naco de carne, gerando um sangramento que a matou em menos de dois minutos.

O não-vivo se aproximou da mesa na qual repousava o livro de capa negra em que todos os visitantes do velório assinaram. Abriu-o. E como quem toca em algo delicado pousou a mão direta na primeira página e começou a percorrer os nomes com os olhos mortos que obviamente não mais enxergavam como os olhos de qualquer criatura mortal, mas mesmo assim não deixavam de notar o mundo ao redor.

— Não quero ficar sozinho. Tenho de visitar todos, tê-los junto de mim. Dentro de mim. Eles se importam comigo. Eles me querem. – pegou o livro com a mão direita e se voltou para o corredor que levava aos demais cômodos da casa – Falar com pa-pai. Conversar. Eu preciso. Do outro lado é frio. Preciso de calor.

Após estas palavras pronunciadas com uma voz que se assemelhava à de uma pessoa com rouquidão, começou a dar seus passos vacilantes para o quarto do pai. A noite seria longa. Precisava encontrar com muitas pessoas que demonstraram afeto para ele, mesmo que depois de morto, indo ao seu velório e assinando o seu livro. A solidão de estar morto é avassaladora e não queria retornar para aquele lugar gelado novamente. Ele queria sentir calor, se aquecer, abraçar a todos. Antes, porém, precisava ter uma conversa de homem para homem com o seu pai. Queria dizer algumas verdades que jamais disse em vida para ele.

FIM

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