Primeiro acontece o baque inicial: “Estou cego”. Simples assim.
Em seguida instala-se o sentimento de perda de identidade, a sensação
de ser um ponto sozinho em meio a multidão que tenta acelerar seus
carros, outrora parados, esperando pelo sinal verde para que possam
dar prosseguimento a suas vidas, em grande parte, superficiais e sem
significado. A premissa inicial de “Ensaio sobre a Cegueira” do
autor português José Saramago é tão perturbadora quanto eficiente
no que se diz respeito a “enxergar a vida sobre outra perspectiva”.
No romance uma epidemia de proporções assustadoras se espalha numa
cegueira generalizada que logo é apelidada de “Cegueira branca”,
devido ao fato de, diferente da cegueira comum, esta ser uma onde as
pessoas passam a “enxergar” um mundo completamente branco ao
redor delas, como se, nas palavras de um dos próprios personagens,
“estivessem todos mergulhados em um mar de leite”. Não demora
para que a cegueira generalizada transforme completamente o mundo
como nos o conhecemos. Seres humanos são reduzidos a um estado de
primitivismo quase animalesco, onde o caos e a desordem imperam e
apenas os mais fortes (ou seriam os mais adaptáveis?) sobrevivem.
Partindo desse pano de fundo inicial, Saramago constrói um mundo
onde valores éticos são constantemente questionados e revistos,
estereótipos são desconstruídos e a própria noção de cegueira,
como a conhecemos, recebe uma nova conotação, aqui bem mais
aprofundada. A cegueira em “ensaio sobre a cegueira” é muito
mais moral do que física e padece de um negativismo quase palpável,
já que se caracteriza pelo excesso de luz e não pela falta dela,
como se não houvesse luz no fim do túnel, como se essa própria luz
é que fosse responsável pelo sentimento de alienação
generalizado...
Logo nas primeiras páginas somos apresentados, no melhor estilo
literário Saramaganiano, (trechos repletos de parágrafos
intermináveis e a constante ausência de travessões e demais sinais
de pontuação, que num primeiro momento podem soar um tanto quanto
confusos para um leitor de primeira viagem) aos personagens que,
diferente de outros romances, aqui não tem nome. Suas profissões ou
graus de parentesco são as únicas coisas que os definem. Eles são
sempre “o taxista”, “o oftalmologista”, “a mulher do
oftalmologista”, “a rapariga dos óculos escuros” e etc... Essa
ausência de nomes específicos acentua o tom de generalidade da
epidemia. É como se ninguém, independente da etnia, grau de
escolaridade, idade, sexo e até mesmo nome, estivesse imune ao mal
da cegueira branca. Além disso, o fato de não nomear seus
personagens também extrapola os limites da cegueira para além do
livro, afetando-nos quase que diretamente. Como leitores nos sentimos
tão perdidos quanto os personagens, graças a essa falta que faz a
necessidade de nomeá-los ou até mesmo de descrevê-los fisicamente.
Quando os doentes são isolados da sociedade nas dependências de um
manicômio abandonado, um dos primeiros problemas oriundos da
epidemia de cegueira vem a tona: Como reorganizar-se socialmente em
meio a um amontoado de pessoas que não conseguem enxergar e que,
graças a imprudência governamental, são logo desprovidas de
necessidades básicas, (como a alimentação e cuidados médicos, por
exemplo) de sobrevivência? Não demora para que a situação piore e
para que a falta de respostas para essa pergunta reflita num
verdadeiro “circo de horrores”. Passamos de seres humanos a uma
massa de carne com pernas, perambulando pelos corredores de um
manicômio superlotado, enquanto fazemos nossas necessidades
fisiológicas e sexuais ao ar livre. É como se ao perdermos a visão
também tivéssemos perdido com ela nossa humanidade. Saramago nos
joga na cara que não passamos de um amontoado teoricamente
organizado de desejos primitivos, reprimidos por uma convicção
lógica socialmente estabelecida. Ao perdermos a capacidade de ver,
também perdemos essa lógica e cegamos como um todo. O pouco de
dignidade que ainda nos resta reside nas costas da mulher do
oftalmologista, a única personagem do romance que não perdeu a
capacidade de enxergar e que, em um atino premeditado, mas
perfeitamente compreensível, de egocentrismo, resolve omitir essa
informação dos demais cegos. Entretanto, não demora para que ela
mesma passe a se questionar sobre o real significado e a
responsabilidade que é ter olhos quando ninguém mais vê. Em seu
papel de redentora (e aqui talvez eu tenha abusado um pouco da
imaginação, percebendo uma certa alfinetada alegórica ao
cristianismo) ela, além de perdoar a traição do marido que dorme
com a rapariga dos óculos escuros, entrega-se a humilhação, como
uma das primeiras a voluntariar-se a manter relações sexuais com os
cegos da outra ala em troca de comida. Como se não bastasse, ela
ainda lava suas companheiras de ala após o estupro generalizado e
comete, ainda que em condições extremas, o que em uma sociedade
civilizada como conhecemos, seria o pior de todos pecados, o
assassinato.
Conceitos como ética, dever e religião são postos de lado. Nas
ruas o coletivo não existe mais. É deixado de lado em prol da lei
de sobrevivência. Um ótimo exemplo do quão grave é o nível de
alienação das pessoas que estão passando por aquela situação é
o trecho onde, após escaparem do manicômio onde haviam sido
isolados, os cegos chegam até a casa da mulher do oftalmologista.
Lá, após se acomodarem, ela encontra água potável e serve para
todos em suas melhores taças, numa tentativa quase desesperada de
resgate de sua humanidade. Outro trecho que faz menção a essa
alienação, agora de maneira bastante irônica, é quando o
personagem que passaríamos a conhecer como “o cachorro das
lágrimas”, ao se deparar com o desespero da mulher do
oftalmologista, que chora desconsolada, sentada na calçada, vai até
ela e lambe suas lágrimas. Enquanto o mundo lá fora explode em
seres humanos se tornando animais, nesse ínterim um animal é capaz
de demonstrar um sentimento quase humano, numa completa inversão de
valores que Saramago praticamente esfrega na cara do leitor, de
maneira simples e direta.
Pouco antes do final do romance há outra alfinetada ao
cristianismo, essa apresentada de maneira mais descarada, quando, ao
chegarem em uma igreja, a mulher do oftalmologista se depara com o
interior dela repleto de estátuas de santos com vendas nos olhos. A
amplitude da cegueira branca, enfim, havia ultrapassado todas as
fronteiras, éticas, morais e até mesmo religiosas. É como se nem
os santos, com seus pés de barro na visão de Saramago, estivessem
imunes a esse processo de perda de identidade, ao mesmo tempo animal
e tão naturalmente humano.
Ensaio Sobre a Cegueira - O Filme: Em 2008 o diretor brasileiro Fernando Meirelles levou a obra para o
cinema, em um adaptação que mostrou-se bastante fiel ao romance de
Saramago, com a ressalva de algumas sutis reinterpretações
poéticas, como, por exemplo, a questão do taxista, o primeiro a
cegar, e sua esposa serem de origem oriental. A comunicação deles
em outra língua, sem legendas, acaba deixando o telespectador tão
perdido quanto os cegos do romance. Além disso há a questão do
ponto de vista pelo qual a história é apresentada. No livro
Saramago nos transporta para a pele dos cegos, que, sendo cegos,
possuem uma visão limitada dos fatos. No filme Meirelles tenta, por
diversas vezes, simular essa situação, reproduzir a percepção dos
cegos que é passada nos livros, através de efeitos de luz, mantendo
a tela toda branca ou negra. Ao também privar os telespectadores da
visão Meirelles tenciona muito provavelmente transpor artisticamente
a ideia de cegueira generalizada passada no romance, que, de outra
forma, seria imaginativamente inviável, a menos que fossemos todos
realmente cegos.
Baixar o Filme - Ensaio Sobre a Cegueira - Adaptação da obra de José Saramago - http://mcaf.ee/eaznd
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